Novo projeto agrícola daria autonomia a milhões de produtores, reduziria preço dos alimentos e reduziria poder das elites. Mas agronegócio financia campanhas, para comprar silêncios…
Gustavo Souto de Noronha
Desenvolvimento e democracia não são compatíveis com a miséria. O Brasil, de acordo com dados do Banco Mundial, é a sétima economia do mundo pelo PIB total calculado segundo a paridade de poder de compra. Entretanto essa riqueza é mal distribuída.
É comum associar o combate à pobreza extrema unicamente às políticas de transferência de renda. Entretanto, faz-se necessário contrapor esta visão com políticas que gerem um fluxo de renda, como a reforma agrária.
Tanto que uma das dimensões do Plano Brasil Sem Miséria do Governo Federal contempla a inclusão produtiva. A reforma agrária é uma das melhores alternativas de geração de emprego e renda, incluindo-se aí as políticas – de crédito e assistência técnica – necessárias à efetiva estruturação econômica e social das famílias assentadas.
Alguns teóricos do desenvolvimento econômico, inclusive no campo político da direita, como Rostow, advogam sobre a necessidade de ruptura com as elites tradicionais. Observando a sobre-representação da chamada bancada ruralista no Congresso Nacional, percebemos a atrasada atualidade desta agenda no Brasil.
Outro ponto importante, é o viés anti-inflacionário da reforma agrária. As causas de um processo inflacionário podem ser diversas: aquecimento da economia; choques de oferta; conflito distributivo entre capital e trabalho; ou resultado das projeções dos agentes. Raramente os processos inflacionários têm causa única e o mais ordinário é que, pelo menos, três destes quatro fatores estejam associados nos surtos de aumento de preços.
Impactos da oferta
Em uma análise simplificada, os processos inflacionários decorrentes de excesso de demanda ou de choques de oferta, em realidade traduzem desequilíbrios entre oferta e procura em diversos setores da economia.
Nos desajustes de oferta não podemos falar de um choque homogêneo que afete todos os mercados, isto seria uma recessão e não um choque de oferta a provocar alguma inflação. Os impactos da oferta em processos inflacionários normalmente estão associados a fatores exógenos aos modelos econômicos usuais e que afetam mercados importantes: quebras de safras agrícolas, guerras, movimentação conjunta dos produtores de determinado bem.
Olhando o mercado de alimentos, recorrente vilão da inflação. A demanda por alimentos é relativamente inelástica, pode variar entre a natureza do bem, mas pouco provável que alguém deixe de comer para consumir qualquer outro bem, mais crível é o movimento contrário.
A variação nos preços deste mercado explica-se, em parte, por um problema de oferta insuficiente para atender à demanda, mas também pela vinculação de determinados produtos aos mercados internacionais de commodities. Logo, um primeiro passo é buscar desvincular os preços dos alimentos dos mercados externo e interno.
A grande propriedade produz principalmente para o mercado externo, não afeta de sobremaneira a curva de oferta interna de alimentos. O consumo interno destes itens também não afeta seu preço, mas sim as variações no mercado internacional. Devemos, portanto, preliminarmente verificar se a inflação observada decorre do aumento de preços nestes produtos, o que não parece ser o caso.
Fica patente, como no caso alegórico do tomate, que um choque de oferta em um produto cuja demanda é bastante inelástica, se observa um aumento extraordinário de preço. É preciso, portanto, construir uma alternativa que garanta um aumento da oferta de comida. O Censo Agropecuário do IBGE mostra que a agricultura familiar é responsável pela maior parte do alimento na mesa do brasileiro.
Ineficiente
Ademais, diversos estudos econômicos, inclusive por teóricos neoclássicos, demonstram que a grande propriedade é ineficiente em razão de custos crescentes de escala. Os custos de gerenciamento, logística e mão de obra, a imprevisibilidade meteorológica e a volatilidade dos preços internacionais são alguns fatores que fazem alguns analistas afirmar que o setor agrícola sequer seria uma atividade capitalista em senso estrito.
Desta forma, ousamos afirmar que é preciso mudar o paradigma da produção agropecuária brasileira. Deve-se entender que entre todas as funções clássicas da agricultura na economia, a mais primordial é prover a economia de uma oferta crescente de alimentos.
Isto não ocorrerá numa economia cuja produção agrícola está voltada para o mercado externo. O preço do tomate só cai quando há mais agricultores produzindo tomate, isto só é possível com a democratização do acesso à terra. Para reduzir a inflação, particularmente quando sua causa primordial é um choque de oferta de alimentos, é preciso ampliar o número de agricultores familiares, é preciso fazer reforma agrária.
Não se pode ainda esquecer que diversas análises históricas apontam que os países considerados desenvolvidos todos passaram, em algum momento por um processo de democratização do ativo terra. Ou seja, é preciso, no mínimo, destravar o debate da questão agrária para avançarmos no processo de desenvolvimento brasileiro.
Perspectiva geopolítica
Avançando para uma perspectiva geopolítica, a reforma agrária ganha importância. Qualquer nação que se pretenda soberana deve ter mecanismos de assegurar à sua população a soberania alimentar. Num raciocínio trivial, um país cuja alimentação venha do setor externo, num caso extremo de guerra, pode com um simples cerco naval ver sua população condenada à fome.
A combinação entre o crescimento contínuo da população mundial e os processos de erosão do solo, a escassez hídrica cada vez maior e o aquecimento global, produzem um quadro em que a demanda se amplia sem ser acompanhada pela oferta. Não se pode minimizar o risco de que guerras venham a ser travadas por alimentos e água.
A distribuição do ativo terra busca responder a estes dois pontos. Se por um lado a produção da agricultura familiar e reforma agrária garante a maioria dos alimentos que a população brasileira consome, por outro promove uma efetiva ocupação dos interiores assegurando que estes recursos permaneçam em poder da população do país e não em grandes grupos sujeitos a controle internacional.
De uma forma ou de outra, a reforma agrária precisa ser colocada em evidência neste processo eleitoral. Diante da força e avanço da bancada ruralista, cuja postura e aliança com a bancada evangélica não permite um maior avanço das pautas progressistas, a política deve ser debatida sob a perspectiva do poeta alemão Bertolt Brecht: Pergunta sempre a cada ideia: serves a quem?