Saídas de sentenciados em feriados comemorativos estão deixando a sociedade em sobressalto, criando uma sensação de insegurança
As chamadas “saidinhas” de presidiários, durante feriados comemorativos, estão deixando em sobressalto a sociedade. Não adianta tentar dar um caráter negativo a essa reação, porque a sensação de insegurança é exatamente essa.
A cada época, a cada feriado, que pode ser prolongado, uma legião de sentenciados é colocada nas ruas, sob a promessa de retornar em data certa. Muitos voltam, é verdade. Muitos não retornam, também é verdade.
Para a sociedade, este é um grande enigma. Entre os beneficiados, gente que matou até a mãe e sai no dia das mães, não para visita ao cemitério. Gente que matou o pai e é liberada no dia dos pais, com túmulo fora do roteiro. Macabro. Gente que despreza a família, mas é colocada em liberdade para ficar com ela, mas não costuma ficar. Gente que aproveita a folga do cárcere para voltar a praticar crimes.
Por que isso? Qual a razão?
Vamos à tentativa das respostas, à luz da mínima razão e de um pouquinho de lógica. Pueril tratar desse assunto com base em preferências políticas ou ideológicas, sempre – em matéria de cárcere – desconectadas da realidade. Vejamos, então, e rigorosamente, os fatos que giram em torno desse tema.
Se o corpo é a prisão da alma, como preconizava Platão, o filósofo grego, a história da humanidade passa por várias formas de punição a criminosos, como retrata com precisão o filósofo e psiquiatra Michel Foucault, em sua magistral obra “Vigiar e Punir”. Do século V, a origem das penitências, daí o termo penitenciária, passamos pela pena capital, com formatos variados, repletos de suplícios, até se chegar ao isolamento, a clausura absoluta, como uma nova lei – expoentes do Direito, como Manoel Pedro Pimentel, Miguel Reali Junior e René Ariel Dotti.
Acompanhei várias dessas reuniões, percebendo que as intenções eram das melhores na busca de humanizar as prisões. Algo que não se via desde que Flaminio Fávero, o precursor dos direitos humanos, consagrou o que se chamou de “Instituto de Regeneração” a segregação como instituição total, mas com papel de recuperar, como se lê na fachada da antiga Penitenciária do Estado, hoje feminina, obra do arquiteto Ramos de Azevedo.
Pois bem: os tempos mudaram. A sociedade mudou. Os criminosos mudaram. O perfil das vítimas se alterou.
Na constante fase de mutações, é preciso corrigir erros, constatar falhas, aprimorar métodos. Se não, surge a deterioração gradativa da persecução penal. Se o crime evolui, a investigação, a repressão e a punição não podem permanecer intactas. Elementar, meu caro Watson, como escreveu Conan Doyle.
À época lei de 1984, furtos eram predominância entre os crimes contra o patrimônio. Hoje, os roubos de igualam. Matar depois e roubar primeiro era coisa rara. Hoje, os ditos estudiosos, ou especialistas, nem perceberam, ainda, que em muitos casos mata-se primeiro para roubar depois, subvertendo o conceito de latrocínio. Nos tempos de 1984, não os do escritor George Orwell, havia batedores de carteira, os chamados punguistas, traficantes de substâncias menos perigosas e golpes que hoje poderiam ser considerados ingênuos.
Tudo isto, de um lado. Dentro do outro, a prisão, não havia crime organizado comandando ações internas e externas. Pelo contrário: o poder dentro da prisão era considerado simplesmente inútil, nada acrescentava à vida do condenado. Na prisão, era proibida a entrada de jornais. Aparelhos de televisão, nem pensar. Rádio, também. Quer dizer: o isolamento era total, não havia contato algum entre quem estava dentro e quem estava fora. Nenhuma comunicação, portanto, com o mundo exterior.
Havia mais, ainda: para a concessão de qualquer benesse, principalmente os indultos, o diretor do estabelecimento penal encaminhava uma lista de postulantes e merecedores de um benefício a um órgão chamado Conselho Penitenciário, ao qual cabia examinar cada caso, conceder ou negar a pretensão. Ou seja: na criminalidade de outros tempos, uma avaliação individual.
O relógio desse tempo continuou marcando as horas. Hoje, o crime manda e desmanda; os telefones celulares tocam na cadeia; o poder interno é exercido com rigor, aterrorizando funcionários. Inverteram-se papéis. É preciso saber comportar-se dentro da prisão, em gestos e palavras, atitudes e olhares, como se cada um precisasse ter em mãos, permanentemente, um passaporte entre a vida e a morte. É assim que não poderia, mas funciona.
Chegamos assim às “saidinhas”. Podem ser um álibi para a prática de crimes. Podem ser juma irritação de policiais ao prender de novo quem já deveria estar preso. Podem ser uma indignação para as vítimas, nunca ouvidas, e que não conseguem entender esse tipo de situação.
Mas por que isso acontece? Não se leva em conta que a autorização para “saidinhas” é concedida por um cálculo meramente aritmético. Quer dizer: cumpre-se um percentual da pena e se obtém o direito a uma progressão para outro tipo de regime que não seja o fechado. Do fechado para o semiaberto. Do semiaberto parta o aberto. Não se leva em consideração a individualização da pena, a periculosidade pessoal e não coletiva, a potencialidade da reincidência, quase sempre específica. É um fazer de contas, não uma avaliação de personalidade, com maiores ou menores tendências.
O resultado desse equívoco, que pode ser amador ou profissional, ignorante ou letrado, omisso ou acadêmico, é desastroso. Trata-se de uma multidão que sai e não volta. Os teóricos jogam essa responsabilidade sobre as costas da Polícia, naturalmente irritada com a postura oficial. Não se trata, como se vê, de idiossincrasia típica de “conservador”, extremada “direita”, ou “cultura punitivista”.
Os que pensam assim, que busquem uma alternativa, como já escreveu Foucault. Trata-se isto, sim, como disse outro escritor, Albert Camus, que hoje em dia corre risco até de morte quem tiver a ousadia de dizer que dois mais dois são quatro. Quando uma lei não funciona., que se busquem os métodos adequados para fazê-la funcionar. As coisas não podem ser como são só porque eram assim. Esse comportamento é mecânico, foge de realidade, pune e constrange os inocentes, beneficia culpados, abre caminho para a impunidade. Dois mais dois são quatro.
Vejo esse cenário há anos. As alternâncias tem sido para pior. Os atores da persecução penal são agentes do fracasso, pois 65% de reincidência quer dizer exatamente. Não sou melhor do que ninguém. Mas também não quero ficar entre os piores.
Percival de Sousa – Rede Record TV