A Neca de pitibiribas

redaçãoJosé Ribamar Bessa Freire

O colunista Bessa Freire conta onde Reinaldo Azevedo e Emir Sader se unem para malhar Marina

 Neca. É isso mesmo: Neca. O nome dela é Maria Alice, mas a mídia prefere chamá-la pelo apelido familiar. Parece que é mais fácil jogar pedra na Neca do que em Maria Alice, ainda mais com Setúbal no sobrenome. Neca é apedrejada pela direita – uma certa direita, e pela esquerda – uma incerta esquerda, nem tanto por seus defeitos, mas com o objetivo de atingir o cocuruto da Marina Silva, cujo plano de governo Neca coordena. Antes disso, Neca, que era simplesmente Alice, não era incomodada por nenhuma força política. De repente, virou a Geny de gregos e baianos.

Não é Neca, é Marina o pivô de tudo. A direita bombardeia Neca, filha do banqueiro Olavo Setúbal e dona de 3.5% das ações do Banco Itaú, por achar que ela traiu sua classe quando se bandeou para o lado de Marina, de quem é amiga e conselheira. Como é que uma bilionária, que teria cadeira cativa ao lado do Aécio Neves, apoia uma seringueira, ex-empregada doméstica, ex-petista, analfabeta até aos 17 anos? O lugar natural de Neca é no ninho tucano, mas ela preferiu o seringal e com isso já tirou Aécio do segundo turno. A direita não perdoa.

Uma certa direita

Essa é a avaliação da direita cavernosa e hidrófoba, entre eles Reinaldo Azevedo (Veja, Folha de SP), autor de O País dos Petralhas, e Rodrigo Constantino (O Globo, Valor Econômico), ex-analista do banco Fonte Cindam, que cometeu o livro Esquerda Caviar. Os dois odeiam o PT com a mesma intensidade com que esse locutor que vos fala odeia bancos e banqueiros. Preferem o cão chupando manga no inferno ao PT no poder, cujas políticas sociais de solidariedade eles combatem.

– “Três décadas de filiação ao PT são suficientes para manchar o currículo de qualquer ser humano” – segundo Constantino, para quem “Marina é cúmplice desta quadrilha no poder”. Incomodado com a declaração dela de discordância, mas de respeito ao partido do qual saiu, ele ataca: “Quem tem tanto respeito assim pela corja petista, não merece jamais o meu respeito”. Acrescenta: “Marina abraçou a religião verde, uma postura fanática em relação ao meio ambiente, que representa ameaça ao progresso”.

Os dois babam de ódio e, sinceramente, não contribuem com uma vírgula para a compreensão do Brasil. Parece até um jogral: “Marina não me engana” – diz Constantino. “Marina consegue ser pior que o PT” – concorda Azevedo, que na sua coluna (FSP, 29/08) aponta que a vitória da candidata não garante sua posse devido às irregularidades na compra do avião de Eduardo Campos: “Ela foi, obviamente, beneficiária, o que poderá resultar até na cassação de um eventual mandato se a lei for cumprida”. Ou seja, se ganhar, não leva.

Desta forma, ambos os colunistas – não são os únicos – confirmam a “miséria do debate” brasileiro, como apontou muito bem Miriam Leitão, para quem “os epítetos ‘petralhas’ e ‘privataria’ se igualam na estupidez reducionista, são ofensas desqualificadoras, emburrecedoras, mas rendem aos seus inventores a notoriedade que buscam. Ou algo mais sonante”.

Uma incerta esquerda

Já incertos escribas de esquerda acham que quem traiu foi Marina. Foi ela quem aderiu à Neca e não o contrário. Como é que alguém que nasceu no seringal Bagaço, que cortou seringa, fez roça, remou, carregou água, pescou e caçou para sobreviver, militou na pastoral da terra, esteve ao lado de Chico Mendes na fundação do PT no Acre e foi ministra do Lula, comete o sacrilégio de abraçar uma banqueira podre de rica, que nasceu em berço esplêndido ao som do mar e à luz do céu profundo? Marina é Silva, não é Setúbal. Seu lugar natural era ao lado dos Silva. Passou para o lado de lá.

O jornalista Paulo Moreira Leite, autor de “A Outra História do Mensalão”, inventou a outra história de quem vai governar: “Chega de intermediárias: Neca para presidente”. Com ele concorda o respeitável sociólogo marxista Emir Sader, doutor em ciência política, autor de A Nova Toupeira: os Caminhos da Esquerda Latino-Americana, que escreveu artigo intitulado “Marina é a tábua de salvação da direita”.

Convencido de que Marina representa a nova direita no Brasil e encarna “a promiscuidade com o empresariado”, Emir Sader acena com o fantasma da Neca, sugerindo que “Marina está disponível para ser tutelada pelo capital especulativo”:

– “Neca Setúbal coordena seu programa de governo. Isso mesmo! Não só membro da família Setúbal, como membro das instâncias diretivas do banco, se encarrega do programa de Marina” – escreve ele, para quem “uma vez mais a direita teve que buscar no campo originalmente oposto, seu candidato”. Em defesa dessa tese, Emir profere sentença fulminante, falando ex-cathedra, apoiando-se no 18 Brumário de Luís Bonaparte, onde Marx desenha a imagem de um dirigente político que é o oposto do que representa:

– “Ninguém que se creia minimamente progressista, de esquerda ou simplesmente democrático pode apoiar a nova alternativa da direita. Ao contrário, tem que denunciá-la e se mobilizar ativamente – como se fez contra o Serra no final da campanha de 2010″.

Rabo da cutia

Vocês ouviram bem? Quem é de esquerda NÃO PODE votar em Marina, a “nova direita”. Deve denunciá-la. Emir Sader dixit. Emir é “a esquerda” e quem pensa diferente dele é “de direita”. Confesso que tremi nas bases. Eu, pobre coitado, que vesti a camisa de Dilma contra Serra em 2010, que fui exilado e algumas vezes preso, me sinto constrangido por fazer parte agora da “nova direita”. Não votaria em Eduardo, mas em Marina sim.

Afinal, qual a diferença entre NecaSetubal e Kátia Abreu? Por que o apoio de Neca transforma Marina na “nova direita”, mas Dilma permanece no campo da esquerda, apesar da aliança com Kátia Abreu, com o agronegócio e com toda a velha direita: Michel Temer, Collor, Sarney, Renán Calheiros, Jader Barbalho, Maluf? A explicação, eu encontro na célebre frase de Marx no 18 Brumário, reproduzindo um diálogo com sua tia Grundrisse:

– “Macaco não vê o próprio rabo, titia, só vê o da cutia”.

Critica-se programas, alianças e pessoas que se propõem a executá-los. O risco, que é real, de Neca impor os interesses dos bancos num eventual governo de Marina, é o mesmo que o governo Dilma correu com Kátia Abreu e o agronegócio, que impediram a demarcação das terras indígenas, contrariando a Constituição. Aliás, de todos os candidatos, Marina é a única que tem uma história consistente em defesa da demarcação das terras indígenas, de suas línguas e de suas culturas. Esse é o diferencial.

O que esvazia a credibilidade dos discursos é a falta de argumentos sólidos. Nem a cutia do 18 de Brumário elucida esse mistério: uma incerta esquerda jura que Marina é a nova direita e uma certa direita garante que Marina é o velho PT, que é “pior do que o atual PT”.

Trata-se de um desrespeito à biografia de Marina e uma ofensa à inteligência de seus eleitores dizer que ela é um “Collor repaginado”. Afinal, não foi com ela com quem Collor se aliou. Essa xaropada de que Marina é de direita não me parece inteligente, não tira nenhum eleitor dela e ainda pode convencer empresários a financiar sua campanha, com um efeito contrário ao pretendido pelos autores dos ataques.

Nenhum eleitor encontrará um candidato que atenda integralmente suas expectativas. De qualquer forma, será um privilégio o Brasil poder decidir entre candidatas como Dilma e Marina, duas ex-ministras de Lula, igualmente dignas, corretas e limpas, submetidas às alianças e mediações do poder. Embate entre Kátia Abreu e Alice Setúbal? Necas de pitibiribas.

José Ribamar Bessa Freire é professor da Pós-Graduação em Memória Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNI-Rio), onde orienta pesquisas de doutorado e mestrado e da Faculdade de Educação da UERJ, onde coordena o Programa de Estudos dos Povos Indigenas.coordena o Programa de Estudos dos Povos Indígenas (UERJ), pesquisa no Programa de Pós-Graduação em Memória Social (UNIRIO) e edita o site-blog Taqui Pra Ti. Tem mestrado em Paris e doutorado no Rio de Janeiro. É colunista do novo Direto da Redação.

Direto da Redação é editado pelo jornalista Rui Martins.

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