A iniciativa do “Plebiscito Popular por uma constituinte exclusiva e soberana do sistema político”, realizado de 1º a 7 de setembro de 2014, juntamente com a 20ª edição do Grito dos Excluídos e a 27ª Romaria dos Trabalhadores, coloca o dedo numa chaga histórica e estrutural da administração pública brasileira. Embora antiga, com mais de 5 séculos, a ferida jamais cicatrizou. Tanto nos tempos da Colônia e do Império quanto durante a República Federativa, tal ferida caracteriza-se por três fatores entrelaçados e complementares.
O primeiro é de natureza predominantemente econômica. Estudiosos da envergadura de Celso Furtado, Caio Prado Junior e Florestan Fernandes, entre outros, jamais se cansaram de alertar para as distorções da economia brasileira. Ao longo dos séculos, ela se manteve voltada para os interesses dos países centrais (sobretudo Inglaterra e depois Estados Unidos) e de costas para as necessidades básicas da população mais carente do próprio país. Tanto é verdade que onde o solo se revelou mais rico, os habitantes em geral se tornaram mais pobres. A política econômica (se é que podemos falar de “política econômica”) tratava, no fundo, de explorar ao máximo os recursos naturais e o trabalho humano, para em seguida abandonar a região e o povo à própria sorte.
Prova disso são os chamados ciclos econômicos estudados nas escolas – pau-brasil, açucar, algodão, cacau, minerais, café, entre outros. Citemos apenas dois exemplos: de um lado, o Vale do Jequitinhonha, no norte-nordeste de Minas Gerais, após o ciclo do ouro e do diariamente; de outro lado, a região amazônica e sua população ribeirinha, após o ciclo da borracha. À riqueza e ao trabalho, ao esplendor e à exportação – emblematicamente simbolizados no teatro de Manaus – sobrevêm o abandono e a pobreza, a miséria e a fuga em massa para os centros urbanos. Sem falar do desemprego e da fome!
O segundo fator tem a ver mais diretamente com a prática política em todo território nacional. A noção de “patrimonialismo”, herdada da Península ibérica e tão bem desenvolvido pela obra de Raymundo Faoro, constuti não somente uma chave para entender a trajetória da administração pública brasileira, mas também um conceito científico para analisar a prática atual do sistema em vigor. Boa parte do trabalho dos três poderes (executivo, judiciário e legislativo) parece concentrado no esforço de manter os privilégios das classes dominantes como “direitos adquiridos”, ao mesmo tempo que as concessões às classes trabalhadoras são vistas tão somente como “favores eventuais”.
Enquanto os primeiros permanecem intocáveis, os segundos oscilam de acordo com o humor dos senhores que controlam as rédeas do Estado – Os Donos do Poder, na expressão cunhada por Faoro. Ou seja, o mau humor dos administradores públicos, especialmente em tempos de “vacas magras”, pode converter-se em chicote, polícia ou exército. Mais ainda, sempre que as classes trabalhadoras tentaram transformar tais “favores” em “direitos”, a resposta histórica tem sido a repressão nua e crua, às vezes com violência extremada, independentemente de quem seja o governo de plantão.
Isso nos conduz ao terceiro fator, segundo o qual as expressões, “Casa Grande & Senzala” ou “Sobrados e Mocambos”, ambas extraídas da obra do sociólogo Gilberto Freire, se revelam excelentes metáforas para explicar a existência e manutenção da pirâmide social, no Brasil, em termos extremamente injustos e desiguais. Diga-se de passagem que se trata de uma discrepância socioeconômica das mais desequilibradas de todo o planeta! Mais grave ainda, mesmo em tempos de crescimento econômico (descontada a euforia e a retórica das autoridades), a distância entre a base da pirâmide e o andar superior parece crescer de ano para ano. O que mostra que o mercado neoliberal segue a lei férrea do acúmulo e não as “boas intenções” de quem pretende regulá-lo.
Numa palavra, as chamadas “políticas públicas” dos últimos governos não dão conta de “compensar” a concentração de renda no topo da pirâmide. Concentração que se verifica às custas de uma correspondente deterioração ou exclusão social nos andares de baixo. Basta confrontar os ganhos dos maiores conglomerados financeiros nacionais (Itaú e Bradesco), nos anos recentes, com o poder aquisitivo da população de baixa renda. Ironicamente, tais políticas públicas, por mais que venham revestidas de “boas intenções” (novamente), sequer chegam a ser “compensatórias”.
De tudo isso resulta a necessidade de “ocupar ruas e praças por liberdade e direitos”, de acordo com o lema do Grito deste ano. Em se tratando de uma temática que ocupou os debates e reflexões da Semana da Pátria – tanto na pauta do Plebiscito Popular e do Grito dos Excluídos quanto na Plenária dos Movimentos Sociais, na Romaria dos Trabalhadores, com o apoio explícito de Igrejas, entidades e organizações de base – trata-se concretamente de deixar a posição cômoda da plateia. Posição que se limita a assistir os desfiles de tropas e carros armados, soldados e escolares, além de ouvir os discursos retóricos e inflados das autoridades.
O plebiscito popular constitui um convite a descer das arquibancadas, entrar no gramado e participar do jogo. Numa palavra, substituir o patriotismo passivo por um patriotismo consciente, ativo e organizado. Em síntese, não basta aplaudir, é preciso participar da reforma do sistema político, o qual, histórica e estruturalmente, tende a concentrar a riqueza e a renda, por uma parte, e, por outra, a ignorar a condição dos trabalhadores e trabalhadoras, bem como a precarizar os serviços públicos em geral. Daí a necessidade de unir esforços em vista de uma verdadeira e profunda reforma do sistema político, a qual possa dar à luz uma política econômica menos refém do poder financeiro e especulativo (nacional ou internacional), e mais direcionada à liberdade, a participação e aos direitos dos cidadãos.
Roma, Itália, 8 de setembro de 2014
Pe. Alfredo J. Gonçalves, é assessor das Pastorais Sociais da CNBB